Dados oficiais, triados obviamente por essa mítica entidade que dá pelo nome de “ordens superiores”, revelam que 150 pessoas morreram na província angolana do Bié devido à má nutrição. Mesmo que esse número fosse exacto (basta conhecer a região, ou o país, para saber que peca por enorme defeito) seria alarmante. Mas não é. Nem esse nem o que revela que 20 milhões de angolanos são pobres.
Segundo o director provincial de Saúde no Bié, João Cacungula, as mortes foram registadas entre os 2.020 novos casos notificados no ano passado.
O responsável, citado pela agência noticiosa angolana, Angop, avançou que estes números, quer de casos, quer de mortes, indicam uma redução, comparativamente a 2015, ano em que foram registadas menos 22 mortes e menos 99 casos de má nutrição.
João Cacungula frisou que 729 doentes registaram melhorias, 150 abandonaram o tratamento, enquanto 56 foram transferidos para unidades de saúde de referência.
O director provincial de Saúde do Bié avançou que os nove municípios dispõem de unidades especializadas para atendimento de casos de má nutrição, salientando que a formação de quadros de vigilância nutricional em todas as comunidades, acções de sensibilização e aconselhamento, sobretudo às mães que amamentam, têm contribuído para a redução do número de casos e da mortalidade.
Por muito que isso custe às “ordens superiores” (mais exactamente ao regime de sua majestade o rei José Eduardo dos Santos), a verdade é que em Angola existem mais de seis milhões de pessoas subnutridas.
O eterno benefício da bajulação
Apesar desta triste e dramática realidade, essa coisa parasitária chamada Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) não se cansa de elogiar as autoridades esclavagistas do regime, indo mesmo ao ponto de (como faz servilmente Portugal) de elogiar o caso angolano que, afirma, desde o fim da guerra (2002) tem “demonstrado progresso” na evolução da sua situação económica e social e “assinaláveis melhorias na situação de fome e pobreza”. Vinte milhões de pobres são, certamente, a prova provada dessas assinaláveis melhorias.
Diz a CPLP que Angola registou progressos no ensino primário universal, redução da mortalidade infantil e saúde materna, graças a “investimentos assinaláveis nas infra-estruturas de saúde e da educação”.
Se com essas progressos Angola é o país do mundo com o maior índice de mortalidade infantil, onde estaria se não tivesse feito progressos?
Também é verdade, reconhecemos, que a CPLP refere que existe um “longo caminho a percorrer”, pois – diz – 37% da população vive abaixo da linha de pobreza, condição que afecta sobretudo o meio rural, onde estão 60% dos pobres.
Num índice sobre fome e nutrição, um total de 45 países foram analisados no contexto de 22 indicadores que procuram medir a actuação dos governos nas áreas de combate à fome e à subnutrição, tendo Angola ficado em 42º, apenas três lugares acima da Guiné Bissau, que contabiliza os piores resultados.
Apesar da enorme fortuna da família presidencial, Angola um dos países mais corruptos do mundo, é um dos países com piores práticas democráticas, é um país com enormes assimetrias sociais, é o país do mundo com o maior índice de mortalidade infantil do mundo.
Um caso paradigmático
No dia 16 de Março de 2016 a directora clínica do Hospital Pediátrico de Luanda David Bernardino classificou como preocupante a situação naquela unidade sanitária, que estava a observar uma média diária de mais de 500 crianças e mais de 100 internamentos.
Elsa Gomes comentava assim a situação resultante do aumento da afluência de pacientes àquela unidade hospitalar, devido a várias doenças, maioritariamente malária, acompanhada de anemia severa, que estava a causar uma média por dia de 15 óbitos.
“Não sabemos bem o que é que se passa na rede periférica, nós em média observamos uma média de 500 e tal crianças por dia e estamos a internar mais de 100. O que nos dizem é que já foram a vários hospitais e que não encontraram médicos e por isso vêm a esta instituição, não sei qual é a veracidade da situação, mas a verdade é que nós temos uma quantidade muito grande de pacientes”, disse Elsa Gomes.
Segundo a responsável, o hospital tinha, como continua a ter, também um número exíguo de enfermeiros para atender à procura.
“Nós temos um número muito limitado de enfermeiros, isso é de conhecimento de toda a gente que já há uns anos que não há concurso público, saíram principalmente enfermeiros por transferência, porque chegou a altura das pessoas pedirem aposentadoria e nós temos um número muito exíguo de enfermeiros e daí a grande dificuldade que nós temos em atender todos os doentes que nos chegam”, salientou a médica.
Elsa Gomes sublinhou que para a alteração do actual quadro, só uma melhoria na rede do saneamento básico poderá fazer mudar as estatísticas daquela unidade sanitária.
Também em declarações à imprensa, o presidente da Associação de Pediatria de Angola, César Freitas, admitiu que são “elevadíssimos” os números de crianças doentes e de óbitos em todo o país.
“É uma situação que é difícil de gerir neste momento, temos muitas crianças, muitos óbitos, na realidade estas situações são previsíveis. Todos os anos, no princípio do ano, já sabemos que isso vai acontecer, porque é cíclico, é preciso que as autoridades possam ver, que os profissionais possam sentar, para ver e analisar o que se está a passar, porque mesmo nos anos anteriores é um período de muitos óbitos, mas este ano é demais”, disse o médico.
O Ministério da Saúde reconheceu que a situação era preocupante e disse, como diz sempre, estar a tomar medidas para alterar o quadro, tendo na altura já cedido ao hospital pelo menos mais 30 camas, material descartável e medicamentos.
A situação é bem antiga, quase tão antiga como a negligência do regime.
Uma vergonha de todo o tamanho
Em Junho de 2015, por exemplo, o jornal “The New York Times” mostrava a dura realidade dos serviços de saúde de Angola, o país do mundo com o maior índice de óbitos entre crianças, e ligou-os aos números devastadores da corrupção do regime.
Tudo começava, na reportagem, com uma mãe e uma avó que viam morrer em frente aos seus olhos o seu menino. É José. O hospital é impecável, pelo menos nas infra-estruturas e limpeza. Mas, como em tantos outros que aparecem na reportagem, faltam médicos e enfermeiros.
Há 60 mil crianças que morrem todos os dias no mundo. Mas em nenhum país morrem mais crianças do que em Angola. “Ainda assim o governo decidiu cortar os custos com a saúde em 30%”, alertava o jornalista Nicholas Kristof que, juntamente com Adam B. Ellick, assinam o trabalho do jornal norte-americano.
Os jornalistas do “The New York Times” apontavam, e bem, a corrupção como o factor que espoleta esta tragédia humanitária em Angola e mostraram imagens das festas do centro da capital Luanda em que Porsche e Jaguar são meio de transporte habituais e o champanhe é rei nos balcões dos bares.
O jornal norte-americano descrevia Angola como um país de muitas e profundas desigualdades, em que o petróleo e os diamantes deviam ser mais do que suficientes para evitar a morte de crianças.
Nicholas Kristof diz que a maior parte dos casos de morte de menores eram possíveis de prevenir e no texto introdutório da reportagem afirma que nunca mais poderá fazer outro trabalho igual em Angola.
“Angola naturalmente não recebe bem os jornalistas. Demorei cinco anos até conseguir um visto para entrar em Angola, e depois desta reportagem duvido que mais alguma vez consiga entrar no país enquanto este regime estiver no poder”, avança o jornalista.
Só mesmo a… tiro
Recordam-se que, entre outros, a rapper norte-americana Nicki Minaj não ligou aos apelos e veio actuar em Angola, o país onde uma em cada seis crianças morre antes de completar cinco anos?
Recordam-se que a anfitriã, Isabel dos Santos, compensou-a com o módico cachet de cerca de 2 milhões de dólares?
Segundo a Unicef, para além dos números preocupantes relativos à mortalidade infantil, os dados indicam ainda que mais de um quarto das nossas crianças está fisicamente afectado pela subnutrição e que os casos de morte materna durante o parto são de 1 em 35.
Os pais destas crianças que, ao contrário do que pensa o paizinho da rainha santa Isabel, são angolanas, ficaram felizes porque – segundo o regime – a presença de Nicki Minaj ajudou a alimentar muita gente. E é verdade. O clã presidencial alimenta-se muito bem.
Thor Halvorssen, presidente da Human Rights Foundation, bem disse que a corrupção e nepotismo do regime angolano são uma realidade há 40 anos. Mas não adianta.
As crianças morrem à fome? Morrem. Mas o que é que isso interessa? Se os governos europeus e norte-americano idolatram José Eduardo dos Santos, considerando-o um ditador… bom, porque carga de chuva Nicki Minaj não poderia ir sacar uma massas, indiferente ao sofrimento dos angolanos?
A história nem sequer é nova. Há quatro anos já a Human Rights Foundation (HRF), organização de defesa dos direitos humanos sediada em Nova Iorque, acusou a cantora norte-americana Mariah Carey de ter aceitado um cachet de um milhão de dólares para dar um concerto para a “cleptocracia de pai e filha” no poder em Angola.
Na altura, a HRF argumentou que, ao actuar num espectáculo de beneficência para a Cruz Vermelha de Angola, a cantora estava a aceitar “dinheiro da ditadura”.
Thor Halvorssen também divulgou na altura um comunicado no qual descreveu a actuação de Mariah Carey em Angola como “o triste espectáculo de uma artista internacional contratada por um implacável estado policial para entreter e branquear uma cleptocracia de pai e filha que acumulou biliões em rendimentos ilícitos”.
Recorde-se que, em 2011, Mariah Carey confessou publicamente o seu embaraço por ter cantado, em 2008, para o ditador líbio Muammar Khadafi e respectiva família. “Fui ingénua e não sabia por quem estava a ser contratada” afirmou então a artista, acrescentando que “a lição” a tirar do episódio é a de que os artistas “têm de ser mais conscientes e responsáveis”.
Nick Minaj fez-se fotografar embrulhada numa bandeira angolana (“Angola, amo-te”, escreveu), ou ao lado de uma Isabel dos Santos em pose informal. “Nada de especial… Ela é apenas a oitava mulher mais rica do mundo”, escreveu a cantora.
Um mangueiral de crimes
Da parte do regime, vemos o ministro da justiça, Rui Mangueira, a dizer que Angola goza de credibilidade das instituições internacionais sérias em matéria de direitos humanos, por isso não consta da lista de países vistoriados pelas Nações Unidas neste segmento.
Mangueira, que certamente não leva nenhuma criança da sua família ao Hospital Pediátrico de Luanda, lembra que a avaliação que foi feita sobre Angola recentemente pelas Nações Unidas ao nível dos direitos humanos é “extremamente” positiva, “portanto, não há ao nível da comunidade internacional nenhuma condenação em relação Angola neste domínio”.
Rui Mangueira realçou que Angola não consta de nenhuma lista de países que têm que ser supervisionados em matéria de direitos humanos, as contribuições e os conselhos que têm dado ao nível do Conselho dos direitos humanos são fruto dos progressos que país tem estado a fazer.
Tem razão. As nossas crianças não são, segundo o regime, seres humanos e, por isso, não se lhes aplica a questão de terem direitos.